terça-feira, janeiro 31, 2006

Lâmina

Lâmina é uma grande cidade de metal. Titânio, cobre, alumínio refletem a luz do sol enquanto seu calor expande as ligas ao passar da manhã. Ruas ficam mais longas, se dilatam para as passagens volumosas de singulares e automóveis. Durante o dia, as pessoas sentem um gosto ruim na boca e procuram não esbarrar umas nas outras, com o medo da eletricidade estática causar algum acidente infeliz. Imãs e geradores de energia têm circulação restrita, principalmente após o Grande Choque, em que a metade da população morreu eletrocutada. Ao pôr-do-sol, a cidade range se contraindo, diminuindo as distâncias até a casa ou ao bar.
Com tudo isso, Lâmina é uma cidade feliz. A Organização Mundial de Saúde calcula que 7% dos anti-depressivos produzidos no planeta são consumidos por essa única metrópole. Não é apenas essa felicidade que a transforma em um pólo de atração. Lâmina é uma das cidades mais produtivas do mundo, esbanjando vitalidade em sua economia, que tem uma grande vantagem competitiva na produção de borracha e isolantes em geral, além de artigos eróticos. E como uma cidade não pode ter apenas aspectos positivos – principalmente esta, o que geraria uma energia potencial perigosa –, há em cada indivíduo uma repulsa de sua vida nesse ambiente estático, uma força negativa por trás dos sorrisos anti-deprimidos que os impele para fora e lhes dá esperança de que suas vidas não serão resumidas apenas ao que fazem em Lâmina. Quanto maior a esperança de que um dia sairão, mais produtiva Lâmina se torna e mais atrativa fica. Essa combinação neutraliza qualquer energia potencial que possa mudar alguma coisa na vida da cidade.
Essa temporariedade eterna, o contrair e dilatar diários dessa cidade reflexiva transformam as pessoas. Tornam-nas mais profundas, bem interiorizadas nos edifícios metálicos, e extremamente banais. Por exemplo, num acidente amplamente noticiado, multidões se aglomeravam em volta da primeira flor que nasceu em Lâmina. Uma flor bonita, com uma vitalidade tão diferente da realidade condicionada vigente, ainda que surgida das frestas das placas metálicas que dão a estrutura da cidade. Foi um furor social. Ignorando botânicos, que diziam que aquilo era uma flor, filósofos, sociólogos, líderes e pais de família a encheram de significados e explicações. Houve até produções literárias, tudo se extraía daquela flor comum, que, ainda assim, lá se mantinha indiferente ao que dela diziam. Ela sabia que quaisquer que fossem as verdades profundas sobre sua existência, tais significados nada tinham a ver com tais verdades, mas sim sobre aquele que os formulou. O governo, preocupado com a sobrevivência da flor e com a energia estática produzida pelas aglomerações, cercou-a num santuário e cobrou ingresso. O santuário movimenta a economia local pelo consumo de lenços de papel.
Há pessoas que querem mudar Lâmina. Por alguma motivação pessoal, acreditam que a cidade poderia ter mais concreto, mais madeira, areia. Existem sonhadores ainda que acham que a solução para a cidade é ser completamente reformulada, com projetos paisagísticos e urbanos mais baseados na natureza e no ser humano. São alguns movimentos, geralmente zombados por pessoas profundas que estão temporariamente na cidade, que buscam ideais que com alguns remédios seriam resolvidos. Conseguiram fazer algumas transformações, mas na maioria das vezes, a dinâmica da cidade acaba por reformulá-los ou destruí-los. Por exemplo, havia um movimento que clamava ser possível construir casas de madeira. Foram amplamente ignorados. Após muito esforço, conseguiram construir uma casinha – talvez a coisa mais linda já feita – fresca, com um cheiro típico de rústico e confortavelmente desmagnetizada. Os céticos logo desacreditaram, apontando os fios elétricos de cobre e as maçanetas de aço, mas nem foram muito a fundo nas críticas. A casa desmoronou, não suportando o contrair e dilatar diários da cidade e, assim, se comprovou que casas de madeira são inviáveis. Mas, em geral, os cidadãos acharam que havia certa razão no movimento e a venda de carpetes de madeira e papéis de parede que simulam mogno subiram assustadoramente.
Lâmina, enfim, é uma cidade como qualquer outra. As pessoas lá moram por suas escolhas e, mesmo se constrangidas de forma fria e artificial, mesmo se suas escolhas são fruto de um estado de consciência alterado, ou ainda que não haja muitas opções, de lá podem sair quando bem entender. Lâmina é vingativa. Pune que a abandona ou a tenta mudar. Mas a mesma esperança que a torna produtiva, esse sentimento que dá forças pela fé de que o incerto pode ser melhor, é o sinal de que Lâmina ainda é humana. E responde a incentivos humanos.