sexta-feira, novembro 18, 2005

Quarto doze

03/09/2002
Quarto doze

Sentado em sua cama, esperava a mulher de sua vida chegar. Olhava os móveis mas não os via, imerso em seus próprios pensamentos. Doze é uma boa idade. Se conheceram quando tinha doze e ainda era guiado por sua mãe. Viadutos, estradas, muitos carros. Velocidade, veloz. Condomínio fechado e já estava em sua casa. Na casa dela. A mãe conhecia seus pais, ou seu pai, ou sua mãe. O quarto dela era o segundo à direita no corredor. Tinha uma janela.
- Você já percebeu que tem alguns riscos que se movem junto quando a gente olha pela janela? Eles vão descendo...
Ele sabia do que ela estava falando.
- Se você olhar para cima, sem se importar com eles, eles também estarão lá. – disse orgulhoso.
Tinham um pacto. Não falaram mas sabiam que foram feitos um para o outro. A mãe do menino se foi, obrigando o menino a partir. Viadutos cinzas, cinzas.
Como encontrá-la novamente? Mãe, lembra quando anos atrás fomos a um condomínio longe longe, que passava por muitas estradas e viadutos encontrar um parente, algum amigo? Nosso único contato.
Quando chegaria? E como ter certeza que o pacto ainda era forte. Muitas experiências se passaram desde então. Experiências más podem corromper um pacto tão abstrato, momentâneo eternamente. Ela deve ser outra pessoa, amargurada com a vida ou anêmica do vapor vital, o que desinteressa até a amargura. Expectativas, expectativas. E se ela interpretou o pacto baseada em alguma impressão errada? Dúvidas feias, más! Quando ela chegará?
Do que se tratava o sonho? Ela vinha, ela vinha. Ela vinha! A repetição fazia as palavras perderem o sentido como quando a outra, a outra foi embora. A outra não se comparava, compara a ela, qual o seu nome? O nome não tem sentido, a vida ele não lembra. Por que ela demora, por quê? Onde está ela, ele a chama. Vem, vem! Ele ouve seus passos pelo assoalho no corredor. Não! Não! E se ela não gostar de mim pelo que sou? Como a outra, a outra! Onde estão os passos? Ela parou? Estará atrás da porta? Sim, lá está ela. Atrás da porta. Lá ela ficará e eu ficarei deste lado. Toca a porta, a fina madeira que os separa. Ela está do outro lado e eu aqui, aqui. O quê? Quem está aí? – ele não pergunta.
Volta correndo para a cama. Onde estou, onde estou? Onde ela está? E a outra? Onde sou o que estou? ... não pode ser! Por quê? Não, a outra não era tão importante, a mulher da minha vida eu conheci quando tinha doze! Doze!

- Doutor, problemas no quarto doze.

domingo, setembro 04, 2005

Razões

23.07.2003

Quando percebemos o teor da palestra, o mal-estar já havia ocorrido. Fui para fora, tomar um ar, mas minha irmã, Joana, permaneceu no auditório, ouvindo baboseira alienantes. Não sei o que aconteceu lá dentro, não consegui voltar para aquela atmosfera sufocante. Os gritos inflamados da platéia reverenciavam as idéias absurdas.
Minha irmã começou a mudar. Seus atos ficaram cada vez mais estranhos, sua vida dirigida. O caráter alegre e comunicativo transformou-se com as responsabilidades que assumia na organização, ficou opaco, focado. Nossos pais, perdidos, sofriam veladamente com as decisões e o fechamento da filha. Apenas sabíamos que havia conseguido um papel de destaque na organização.
Foi quando começaram as visitas noturnas. Ela, ou pessoas enviadas por Ela, entravam, no meu quarto e ficavam horas me observando fingir dormir. Comecei a dormir com a porta trancada. Ou tentar dormir. Nas noites que se seguiram, Ela me visitou acompanhada, esbanjando o fácil acesso que tinha ao meu quarto e ridicularizando minhas tentativas patéticas de bloqueá-lo.
A noite em que A matei começou com Ela subindo uma escada para pegar um livro – exatamente na prateleira onde a arma do meu pai era escondida. Histérica e apavorada, minha mãe bloqueou a porta do meu quarto com seu corpo, bradando palavras de ordem e enlouquecendo completamente. Dentro do quarto, fechado, senti o sorriso dEla, deleitando-se com o medo que causava. Meu pai levou minha mãe para uma clínica e nunca mais soube dos dois.
Nesta noite fui até o seu quarto – aterrorizado – mostrar que não tinha medo dEla. Ficaria na beira da cama como fazia Ela em suas visitas. O horror me dominou quando Ela se levantou – não estava dormindo! – e ficou me encarando. Aquelas duas pedras inexpressivas apenas me olhavam, nada mais. Não resisti, me aproximei da cama, agarrei sua cabeça com as duas mãos e violentamente a joguei na quina da cama, estourando seu crânio. Subi em seu corpo e fiquei martelando a madeira da cama com a cabeça dEla. Foi delicioso.
Em frenesi, golpeava a cama com aquele objeto odioso entre minhas mãos. Todo o ódio, a fúria, a tensão se esvaíram com os golpes que espalhavam massa cinzenta e sangue pelo quarto. Nunca havia me sentido tão livre, tão bem colocado: bate. Bate. Bate. Bate.
Assim matei minha irmã com toques de violência na frente de sua amiga. No canto do quarto, sua colega de organização me observava estourar o crânio de Joana sem esboçar a mínima emoção ou compaixão. Apenas esperou minha exaustão e saciedade para me conduzir até o meu quarto, onde dormi profundamente. Estava iniciada a era de terror.
Substituíram minha irmã, por algum motivo, por um rapaz. Todas as noites, a amiga e o rapaz me traziam vítimas que matava sempre pressionando rápida e violentamente – e em golpes repetidos – a cabeça contra uma parede, o chão, a cama. Mandavam pessoas para eu matar pela ‘causa’ que ignorava.
Após cada assassinato, exaurido, pegava uma pequena lasca do crânio esfacelado e ficava roçando na superfície quebrada de um espelho, enquanto uma grande festa acontecia pela casa, nunca no meu quarto. Minha imagem era refletida parcialmente distorcida na pequena rachadura e com a lasca acariciava essa imagem até perceber que era dia e precisava tomar o café da manhã.
Tornou-se rotina tomar café com a amiga e o rapaz num clima íntimo e familiar, embora jamais carinhoso. Curiosamente, após cada morte, o rosto do rapaz transmutava-se em algo cada vez mais andrógino, caminhando claramente para o feminino. Questionei sobre isso à amiga, que me deu uma concisa e razoável explicação. Na verdade, elas eram duas mulheres que assumiam os corpos de outros, transmutando-os até a máxima semelhança de seus corpos originais de alguns séculos místicos atrás. A morte de minha irmã, sua substituição e as mortes dos membros da organização faziam parte de um ritual doentio e com significação duvidosa que elas haviam inventado para o processo funcionar.
Fora isso, a rotina seguia normalmente, como um pesadelo sonhado placidamente. A cada novo dia, mais à vontade se sentiam comigo e eu com elas, embora ainda estivesse, por alguma razão, ressentido. Nesse ambiente, fui conhecendo as personalidades histéricas e afetadas. Suas brigas e discordâncias – constantes – eram artificiais, supérfluas. Eram espetáculos de melodrama e de pancadarias que não afetavam suas unhas. Uma noite, após o esmagamento do dia, saí fatigado do quarto para encontrar as duas numa calorosa discussão no corredor.
A amiga saiu raivosa e me arrastou até um canto, onde me falou como deveria matar sua colega. Uma parte específica da nuca deveria ser perfurada, sob tal ângulo – um capricho das duas – e tudo aquilo acabaria. Pela experiência adquirida, me senti apto a realizar tal feito, comentário que, quando exposto, foi prontamente escarnecido pela amiga. Então, eu a matei como indicado, provando minha habilidade.
Disposto a resolver a situação, fui até o quarto de Joana, onde a outra estava dormindo. A serenidade persistia no ambiente ao matá-la. Fiz o indicado e, batendo repetidamente o crânio numa quina, esfacelei toda a parte de trás, ficando apenas um rosto sem nada atrás.
Foi quando começaram os clarões de consciência. Estava com dois corpos para cuidar! O que elas faziam com os corpos que sobravam depois de minhas sessões? No porão talvez? Achei adequado dobrar os corpos e jogar na água. Com o problema resolvido, a polícia chegou, acompanhada de vários vizinhos. Por alguma razão, todos sabiam que aquela era uma casa ruim e me acolheram na casa ao lado, em estado de choque.
Fiquei nessa casa esperando que me prendessem, mas após revistas, nada de anormal foi encontrado. Em um espelho baixo, enquanto meus anfitriões trocavam preocupações, me agachei e fiquei acariciando a imagem do meu rosto respingado de sangue, sem sentimento, sem nenhuma razão.

quinta-feira, setembro 01, 2005

Subterrâneas

19.09.2002

O vagão pára na estação. Metrô. As portas se abrem e todos saem. Menos ela e ele. Ele vai até a saida e a chama, quase implorando:
- Vem, vem!
Ela permanece sentada, angustiadas mãos entre os joelhos. Olhos segurando todos os sentimentos manifestados pelas lágrimas que não saem. Garganta bloqueada pelos dentes cerrados na boca pálida.
O barulho agudo aviso de portas fechando. Violentamente bloqueadas por ele.
- Vamos! – manda implorando. – Vamos! – com menos convicção. – Vamos. – diz para si, enquanto ela se vai, com o metrô.

Luzes e subterrâneas paisagens com o grito do ar se lamentando. Na viagem pela frialidade inorgânica da terra, o verme corta os obscuros túneis, arranhando e machucando. As mãos tensionam, os olhos fraquejam e o bloqueio se rompe. Convulsões e espasmático choro em alta velocidade. O mundo desaba no labirinto. Tristeza e desespero. Dor e sofrimento. Perdidos nas entranhas do mundo.

quarta-feira, agosto 31, 2005

Relacionamentos

10.02.2003


O senhor Joaquim chega em casa e fecha seu guarda-chuva. Limpa os ferimentos de pedras pelo seu corpo e aplica sua injeção de relaxamento: estava em casa!

- Querida, cheguei! A chuva de meteoros está terrível lá fora, um horror! Imagino os pobres mutantes vagando pela rua pedindo alguma comida enlatada aos lixos eletrônicos! Os que não têm a pele mais dura geneticamente devem estar todos mortos! Amor, você está aqui no quarto...?

Joaquim se depara com sua mulher nua sobre a cama desarrumada. Sua face denuncia as horas de prazer que acabou de ter e o corpo o cansaço de uma maratona sexual. Ao seu lado, uma placa de circuitos expostos, ligada à tomada.

- Manoela! Você está me traindo com o porteiro eletrônico? – falou calmamente Joaquim, enquanto pegava uma injeção de adrenalina em sua pasta.

O silêncio pós-êxtase da esposa não sanou a dúvida do corno.

- Como pôde?! - mais agitado, Joaquim sobe na cama e começa a sacudir a mulher em transe - foi pra isso que paguei sua mudança de sexo?! Vagabunda! - um tapa violento faz Manoela cair da cama.

Joaquim recebe um choque elétrico. Ele pula sobre a placa e ambos rolam pelo chão em uma calorosa briga eletrizante. Logo é subjugado pelo fio da tomada enrolado em seu pescoço.

- Seu pentium! Aposto que só tem 8 megas! Vai ver só, vou rodar em você um anti-vírus tão pesado que você vai implorar por um vírus!

A pequena lâmpada da placa acendeu e apagou algumas vezes. - Não enche! - respondeu o infeliz preso. Os dois começam a travar um longo diálogo de ofensas e denúncias. Joaquim falou fervorosamente sobre como fazia o update toda a semana, enquanto o porteiro eletrônico piscava incisamente sobre a inexistência de fio terra para o mínimo de segurança no trabalho.

Ambos não se entenderam até o efeito da injeção de adrenalina passar, quando o marido concordou em negociar. Pegou o corpo extasiado da mulher do chão, colocou sobre a cama e começaram os três a conversar. Entre formigamentos e carícias em chips, acabaram se entendendo em um menage violento e prazeroso.

No final das contas, Manoela foi mandada pra fora porque a borracha não agüentou toda a pressão. Vive até hoje com os mutantes. Joaquim e o porteiro eletrônico compraram um negão superdotado e dividiram as despesas da cirurgia de mudança de sexo, mas agora para Joaquim. Vivem os três no mesmo sítio, muito satisfeitos, pois, além de tudo, o negão é ligado a um fio terra.

terça-feira, agosto 30, 2005

Falha crítica

Operação ilegal.
Não foram encontrados no registro razões para a existência.

Tentando restaurar sistema................................ falha.
Iniciando modo de segurança.............................. ativado.

Funcionando em modo de segurança.

Explorando razões para a manutenção do funcionamento do sistema. Executar.