domingo, setembro 04, 2005

Razões

23.07.2003

Quando percebemos o teor da palestra, o mal-estar já havia ocorrido. Fui para fora, tomar um ar, mas minha irmã, Joana, permaneceu no auditório, ouvindo baboseira alienantes. Não sei o que aconteceu lá dentro, não consegui voltar para aquela atmosfera sufocante. Os gritos inflamados da platéia reverenciavam as idéias absurdas.
Minha irmã começou a mudar. Seus atos ficaram cada vez mais estranhos, sua vida dirigida. O caráter alegre e comunicativo transformou-se com as responsabilidades que assumia na organização, ficou opaco, focado. Nossos pais, perdidos, sofriam veladamente com as decisões e o fechamento da filha. Apenas sabíamos que havia conseguido um papel de destaque na organização.
Foi quando começaram as visitas noturnas. Ela, ou pessoas enviadas por Ela, entravam, no meu quarto e ficavam horas me observando fingir dormir. Comecei a dormir com a porta trancada. Ou tentar dormir. Nas noites que se seguiram, Ela me visitou acompanhada, esbanjando o fácil acesso que tinha ao meu quarto e ridicularizando minhas tentativas patéticas de bloqueá-lo.
A noite em que A matei começou com Ela subindo uma escada para pegar um livro – exatamente na prateleira onde a arma do meu pai era escondida. Histérica e apavorada, minha mãe bloqueou a porta do meu quarto com seu corpo, bradando palavras de ordem e enlouquecendo completamente. Dentro do quarto, fechado, senti o sorriso dEla, deleitando-se com o medo que causava. Meu pai levou minha mãe para uma clínica e nunca mais soube dos dois.
Nesta noite fui até o seu quarto – aterrorizado – mostrar que não tinha medo dEla. Ficaria na beira da cama como fazia Ela em suas visitas. O horror me dominou quando Ela se levantou – não estava dormindo! – e ficou me encarando. Aquelas duas pedras inexpressivas apenas me olhavam, nada mais. Não resisti, me aproximei da cama, agarrei sua cabeça com as duas mãos e violentamente a joguei na quina da cama, estourando seu crânio. Subi em seu corpo e fiquei martelando a madeira da cama com a cabeça dEla. Foi delicioso.
Em frenesi, golpeava a cama com aquele objeto odioso entre minhas mãos. Todo o ódio, a fúria, a tensão se esvaíram com os golpes que espalhavam massa cinzenta e sangue pelo quarto. Nunca havia me sentido tão livre, tão bem colocado: bate. Bate. Bate. Bate.
Assim matei minha irmã com toques de violência na frente de sua amiga. No canto do quarto, sua colega de organização me observava estourar o crânio de Joana sem esboçar a mínima emoção ou compaixão. Apenas esperou minha exaustão e saciedade para me conduzir até o meu quarto, onde dormi profundamente. Estava iniciada a era de terror.
Substituíram minha irmã, por algum motivo, por um rapaz. Todas as noites, a amiga e o rapaz me traziam vítimas que matava sempre pressionando rápida e violentamente – e em golpes repetidos – a cabeça contra uma parede, o chão, a cama. Mandavam pessoas para eu matar pela ‘causa’ que ignorava.
Após cada assassinato, exaurido, pegava uma pequena lasca do crânio esfacelado e ficava roçando na superfície quebrada de um espelho, enquanto uma grande festa acontecia pela casa, nunca no meu quarto. Minha imagem era refletida parcialmente distorcida na pequena rachadura e com a lasca acariciava essa imagem até perceber que era dia e precisava tomar o café da manhã.
Tornou-se rotina tomar café com a amiga e o rapaz num clima íntimo e familiar, embora jamais carinhoso. Curiosamente, após cada morte, o rosto do rapaz transmutava-se em algo cada vez mais andrógino, caminhando claramente para o feminino. Questionei sobre isso à amiga, que me deu uma concisa e razoável explicação. Na verdade, elas eram duas mulheres que assumiam os corpos de outros, transmutando-os até a máxima semelhança de seus corpos originais de alguns séculos místicos atrás. A morte de minha irmã, sua substituição e as mortes dos membros da organização faziam parte de um ritual doentio e com significação duvidosa que elas haviam inventado para o processo funcionar.
Fora isso, a rotina seguia normalmente, como um pesadelo sonhado placidamente. A cada novo dia, mais à vontade se sentiam comigo e eu com elas, embora ainda estivesse, por alguma razão, ressentido. Nesse ambiente, fui conhecendo as personalidades histéricas e afetadas. Suas brigas e discordâncias – constantes – eram artificiais, supérfluas. Eram espetáculos de melodrama e de pancadarias que não afetavam suas unhas. Uma noite, após o esmagamento do dia, saí fatigado do quarto para encontrar as duas numa calorosa discussão no corredor.
A amiga saiu raivosa e me arrastou até um canto, onde me falou como deveria matar sua colega. Uma parte específica da nuca deveria ser perfurada, sob tal ângulo – um capricho das duas – e tudo aquilo acabaria. Pela experiência adquirida, me senti apto a realizar tal feito, comentário que, quando exposto, foi prontamente escarnecido pela amiga. Então, eu a matei como indicado, provando minha habilidade.
Disposto a resolver a situação, fui até o quarto de Joana, onde a outra estava dormindo. A serenidade persistia no ambiente ao matá-la. Fiz o indicado e, batendo repetidamente o crânio numa quina, esfacelei toda a parte de trás, ficando apenas um rosto sem nada atrás.
Foi quando começaram os clarões de consciência. Estava com dois corpos para cuidar! O que elas faziam com os corpos que sobravam depois de minhas sessões? No porão talvez? Achei adequado dobrar os corpos e jogar na água. Com o problema resolvido, a polícia chegou, acompanhada de vários vizinhos. Por alguma razão, todos sabiam que aquela era uma casa ruim e me acolheram na casa ao lado, em estado de choque.
Fiquei nessa casa esperando que me prendessem, mas após revistas, nada de anormal foi encontrado. Em um espelho baixo, enquanto meus anfitriões trocavam preocupações, me agachei e fiquei acariciando a imagem do meu rosto respingado de sangue, sem sentimento, sem nenhuma razão.

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