segunda-feira, dezembro 04, 2006

Quarto de Hotel

Um quarto num hotel barato, outrora luxuoso. Reconhecem os que por lá já passaram o papel de parede florido e envelhecido, cuja superfície irregular é coberta por quadros com fotos urbanas, assim como seus móveis gastos e madeirentos, com cheiro de origem e histórias. Grandes personalidades por ele já passaram, mas nenhuma conhecida. É visitado hoje por luxúrias e volúpias, todas bem conhecidas e exploradas. Inconsciente e indefeso, deixa-se penetrar por casais e grupos com cortinas fechadas, abafando as luzes que vêm do desconhecido.
A porta se abre e uma mini-saia e um cansado pai existem. Não há inexperiência no recinto, não havendo nada que os separe. Carnes cruas cansadas de jogos vivendo senão por inércia. Para uma, jogos são obrigação. Para outro, um desesperado pedido de socorro.
Não há novidade quanto a homens distraídos. Querem atenção e compreensão, gastam mais a noite e raramente saem satisfeitos pagando mais por sua culpa ou displicência. Está, contudo, pouco maternal esta noite. Gestos secos derrubam roupas no carpete, o principal foco de atenção entre as quatro paredes, ao som de respirações pesadas.
As cortinas fechadas não se mexem, pulmões se esforçam a puxar um ar que insiste em ficar parado, os sentidos urgem por uma atitude e o tempo ultrapassa os limites do bom senso da distância. Em um sólido e concentrante processo de paciência e resignação, uma voz feminina acaricia o ambiente, forçando o fluido denso em volta, enquanto o perfume adocidado sutilmente se azeda e o quarto perde uma existência. Por alguns instantes, um corpo começa a relaxar e a ser assediado, há a impressão de que todo o quarto está envolvido nele e seus desejos de conforto, que a sua existência é e nada mais. Esses instantes, de repente, param. Subitamente, duas pessoas se encontram no quarto. Elas olham uma para a outra num estranhamento e incertas. E extremamente cansadas. Olhos indiscriminadamente trocam olhares, pavorosamente detectam a presença do outro. Rugas e marcas tornam-se reais, o outro parece formar-se junto de seu passado e de seu presente, revelando-se impensadamente em sua existência. O quarto não tem sentido, apenas os dois que nele se encontram e o dividem.
O pavor da constatação cresce à medida que compreendem o que um fazia com o outro e que, sem tais jogos, não haveria razão para estarem lá. Se não fosse a obrigação de estar lá, por que Jéssica estaria fazendo o que faz? Se não fosse a fuga de suas responsabilidades, o que seria de Paulo naquele quarto?
Uma brisa movimenta as cortinas do quarto, mostrando luz incerta através da janela. Mas ela logo pára.
Os dois desviam o olhar. Jéssica está certa de que não é só aquilo, tem todo um motivo para fazer o que faz. Ela não é apenas o que está naquele quarto. Paulo respira e vê com clareza que está acima de tudo aquilo. É só um quarto sujo e uma prostituta barata. Levanta-se, paga-a, apieda-se e sai do quarto. Jéssica conta o dinheiro, pensa na família e nas contas e fecha a porta.

Medos I

Após risos compartilhados e encontros sem resultados me encantei e a quis para mim. O que é muito complicado num momento de incertezas, em que o resultado de uma vida se confronta com uma outra vida que quer começar. O longo processo de auto-destruição criou inúmeras peças desagregadas e com frio, procurando se acolher numa nova estrutura, ainda sem forma e ainda frágil. Esse novo arranjo, entretanto, ainda repete os vícios e movimentos, agora desarticulados, do antigo e é assim, mais frágil e mais quebradiço.
Chega nesse momento tal incrível criatura, apavorante nos olhos da nova vida nua, que é perigosamente receptiva, que é facilmente desestruturada. Novos olhos incertos do que vêem, que querem ver mas não reconhecem o que se apresenta. Frente a ela há o pavor do desejo misturado à iminência da rejeição. Os vícios agem e a estrutura desaba sobre todos em volta. Qual sua reação? Só os olhos respondem.
Serão abraços e sorrisos uma feliz esperança ou uma masoquista ilusão? Serão as ausências um sinal do que significo? Se for, o significado é bom ou ruim? Ó, medo da entrega. Temo jogar-me em seus braços e não encontrar suporte, despedaçando-me no chão.

Estudos II

- Com licença, vou ao meu quarto fazer um aborto.

Só fica a senhora de vestido negro costurando um vestido negro. O cheiro de mofo é o que impede a cadeira de ranger com o balanço esquizo. O corvo sobre a lareira foi empalhado e enfeita a família entediada com a moldura de mogno.
Violentamente a porta se abre e adentra com o peito nu e a barriga redonda exposta cheios de sebo e sangue uma criatura carregando o corpo de um urso pardo que fitava o teto. Ao jogar o corpo no chão e se ouvir o barulho da carne se acomodando no solo, o caçador arranca a língua do urso e a põe melequenta entre as línguas sua e da velha. Depois a passa entre as pernas da anciã, que fica insatisfeita com o vestido cheio de sangue.
O homem aproveita a ocasião do aborto da filha e adentra seu quarto com a intenção de estuprá-la no processo. A velha coça os cortes no qual ele a costuma penetrar. O urso num lamento cospe mais sangue. O sangue e o mofo fazem o abortado triturado vomitar líquido amniótico.
A velha pega uma faca e abre um buraco de um punho e começa a puxar as entranhas do urso, que ainda não se afogou com o próprio sangue. Ao chegar o estômago, encontra o olho do segurança do zoológico. Joga-o junto às tripas no balde de limpeza, que vai ao fogão virar ensopadinho. O feto foi aproveitado. O cheiro é azedo.
Sentam-se à mesa e engolem com ânsia o vômito um do outro e depois o picadinho. A filha pega o olho e o morde como a uma maçã. O pai lhe dá um tapa e ela guarda o resto do olho entre suas coxas. A velha parece cansada, respira o ar viciado com dificuldade e quer morrer. O caçador limpa as narinas do urso cujos olhos se contorcem. A menina senta sobre o olho comido e faz movimentos repetitivos. O som é do gemido que não sai do urso desesperado.
A bile sobe e o câncer que apodrece o seio esquerdo da velha é lambido e mordido pela boca com restos de fezes de urso. É irregular e com reentrâncias que guardam uma sujeira antiga, que nem a unha da menina conseguiu raspar. A menina se esfrega no urso e puxa seu olho pra morder. A casa adormece, mas os sonhos se confundem. O prazer de um é o pesadelo do outro e uma dor de cabeça começa o dia seguinte.

Estudos I

A beleza das pessoas que conheço está sempre associada a uma certa infelicidade, uma tristeza contígua, uma dimensão apreensível apenas nas latências da experiência estética que se apresenta. Observo a garota, uma menina cuja beleza transparece nos gestos joviais de uma sensualidade inocente. A lembrança dela é a imagem de um sorriso e um olhar distante.Uma figura linda, que não manifesta traço algum de melancolia, só uma reticência que não se conclui. E aí se desvela um medo da incerteza e uma incerteza de fato. Angustiante figura se revela nos instantes efêmeros em que o sorriso se vai e o resto se congela, a beleza no movimento triste de uma atitude que lida de forma bem sucedida com um mal que nos atordoa a todos. Há outra, ereta e elegante, exprimindo personalidade e força, a beleza em sua atitude de entrega a um fim que se delegou. Alguém não apenas verdadeiramente lindo, mas também apaixonante. Nos momentos de fragilidade e descontração também se entrega radiante, demonstrando a flexibilidade madura de uma vida da qual muito se exigiu. É aí que está a dimensão triste, o construto social, adequado, do qual nos revestimos, a inseparabilidade da manifestação autêntica do ser e os formatos sociais. Há ainda o rapaz inteligente e sério. Sua beleza é agressiva, sua convicção e seus fundamentos o enobrecem. Mas quando se aproxima daquela menina, forma a mais bela figura, fica absolutamente confortável e descontraído, se diverte como um menino na forma de homem pode se divertir. O triste aqui está muito mais evidente, mas não menos digno de compaixão. A união e a parceira que tanto deseja não tem reciprocidade, seu desejo se acumula em instintos agressivos e amargor que constroem exatamente sua nobreza. Pensando noutro jovem, cheio de potencial, tão vazio de objetivos. Ou noutra garota, mulher-desejo, uma sedução involuntária de alguém que quer vínculos duradouros, mas só encontra lobos afoitos. Todos lindos, todos tristes. Mas no final dessas observações questiono eu: ao enxergar tristezas nos outros que estes nem mesmo reconhecem, será que tais desventuras estão mesmo sob a beleza que vejo, ou estão inculcadas no olhar do observador? Fugidio, vejo somente eu no que quero enxergar.

sábado, julho 15, 2006

crítica - Eu, você e todos nós (2005)

crítica de filme
Eu, você e todos nós (2005)

O filme de Miranda July é autoral. Não tenho muita certeza do que quero dizer com isso, mas tenho essa impressão ao ver na figura de cada personagem uma faceta evidente da roteirista que também é diretora e atriz. July aparece como crianças curiosas, explorando o mundo sensível à sua volta, abertas aos desejos e estranhezas que lhes acometem. July também aparece como adultos machucados, atentos ao mundo sensível à sua volta, carentes e inseguros aos desejos e estranhezas que lhes acometem.
Isso se aplica também ao ambiente seguro do filme. Todos se conhecem, são de alguma forma familiares. Os traumas também são de família, cerceados por um confortável colchão de amor (não romântico) que não os impede de se machucar, mas alivia bastante. Queimar a mão ou morrer sozinho não são problemas que cortam fundo, já que queimar a mão é torná-la sensível ao toque do amor, assim como o amor impede de que estejamos sozinhos afinal. Há amor por todos os lados, sensibilizando todo mundo.
E é isso que pode tornar o filme insuportável para alguns espectadores. Seguros, todos se permitem uma ingenuidade que, se adequada ao universo infanto-juvenil, pode se tornar insólita quando se envolve os "adultos" do filme. Nada é levado às últimas conseqüências, porque seria muito cruel. Mas isso não é a vida, é um filme. Na vida os adultos ingênuos - ou sinceros e sensíveis - sofrem demais e July não quis fazer um filme sobre os sofrimentos da sua vida, mas sua percepção sobre como ela deveria ser. É questão saber se a dela combina com a do espectador.

cinema: Espaço Unibanco
nota: 6,5

sexta-feira, julho 14, 2006

crítica - Bubble (2005)

crítica de filme

Bubble (2005)

O filme de Steven Soderbergh é uma mostra de que a plastificação do cotidiano não se limita à classe média alta americana. Sua história é sobre os operários de uma fábrica de bonecas que se vêem envolvidos num caso de assassinato, o que pode ser inconveniente, mas ao menos dá aos personagens uma história. Sem isso, a vida passaria a seus olhos como apenas mais uma seqüência de acontecimentos sem intervalos comerciais.
Se o produto de seu trabalho é uma forma de expressar quem você é, ou se isso é uma baboseira filosófica, ao menos em Bubble, essa tese se renova. Aqui confundem-se os olhos inertes das bonecas com os daqueles que as produzem - seja dirigindo o carro, assistindo à TV, ou estirados mortos no chão, Martha, Kyle e Rose não parecem diferenciar se a situação é de intimidade, cansaço ou tensão. Os rostos das bonecas ao menos expressam choro e alegria, mas, convenhamos, não são seus rostos que têm de operar as máquinas.
É um bom filme para nos questionar se o que fazemos é apenas produzir cópias deformadas sobre o que não nos atrevemos ou podemos falar, numa fuga de si, ou se conseguimos, depois dos problemas financeiros, responsabilidades familiares e de nossas próprias angústia, achar um tempo para nós, nesses tempos que, definitivamente, não são pós-modernos.

cinema: Espaço Unibanco
nota: 7,5

terça-feira, janeiro 31, 2006

Lâmina

Lâmina é uma grande cidade de metal. Titânio, cobre, alumínio refletem a luz do sol enquanto seu calor expande as ligas ao passar da manhã. Ruas ficam mais longas, se dilatam para as passagens volumosas de singulares e automóveis. Durante o dia, as pessoas sentem um gosto ruim na boca e procuram não esbarrar umas nas outras, com o medo da eletricidade estática causar algum acidente infeliz. Imãs e geradores de energia têm circulação restrita, principalmente após o Grande Choque, em que a metade da população morreu eletrocutada. Ao pôr-do-sol, a cidade range se contraindo, diminuindo as distâncias até a casa ou ao bar.
Com tudo isso, Lâmina é uma cidade feliz. A Organização Mundial de Saúde calcula que 7% dos anti-depressivos produzidos no planeta são consumidos por essa única metrópole. Não é apenas essa felicidade que a transforma em um pólo de atração. Lâmina é uma das cidades mais produtivas do mundo, esbanjando vitalidade em sua economia, que tem uma grande vantagem competitiva na produção de borracha e isolantes em geral, além de artigos eróticos. E como uma cidade não pode ter apenas aspectos positivos – principalmente esta, o que geraria uma energia potencial perigosa –, há em cada indivíduo uma repulsa de sua vida nesse ambiente estático, uma força negativa por trás dos sorrisos anti-deprimidos que os impele para fora e lhes dá esperança de que suas vidas não serão resumidas apenas ao que fazem em Lâmina. Quanto maior a esperança de que um dia sairão, mais produtiva Lâmina se torna e mais atrativa fica. Essa combinação neutraliza qualquer energia potencial que possa mudar alguma coisa na vida da cidade.
Essa temporariedade eterna, o contrair e dilatar diários dessa cidade reflexiva transformam as pessoas. Tornam-nas mais profundas, bem interiorizadas nos edifícios metálicos, e extremamente banais. Por exemplo, num acidente amplamente noticiado, multidões se aglomeravam em volta da primeira flor que nasceu em Lâmina. Uma flor bonita, com uma vitalidade tão diferente da realidade condicionada vigente, ainda que surgida das frestas das placas metálicas que dão a estrutura da cidade. Foi um furor social. Ignorando botânicos, que diziam que aquilo era uma flor, filósofos, sociólogos, líderes e pais de família a encheram de significados e explicações. Houve até produções literárias, tudo se extraía daquela flor comum, que, ainda assim, lá se mantinha indiferente ao que dela diziam. Ela sabia que quaisquer que fossem as verdades profundas sobre sua existência, tais significados nada tinham a ver com tais verdades, mas sim sobre aquele que os formulou. O governo, preocupado com a sobrevivência da flor e com a energia estática produzida pelas aglomerações, cercou-a num santuário e cobrou ingresso. O santuário movimenta a economia local pelo consumo de lenços de papel.
Há pessoas que querem mudar Lâmina. Por alguma motivação pessoal, acreditam que a cidade poderia ter mais concreto, mais madeira, areia. Existem sonhadores ainda que acham que a solução para a cidade é ser completamente reformulada, com projetos paisagísticos e urbanos mais baseados na natureza e no ser humano. São alguns movimentos, geralmente zombados por pessoas profundas que estão temporariamente na cidade, que buscam ideais que com alguns remédios seriam resolvidos. Conseguiram fazer algumas transformações, mas na maioria das vezes, a dinâmica da cidade acaba por reformulá-los ou destruí-los. Por exemplo, havia um movimento que clamava ser possível construir casas de madeira. Foram amplamente ignorados. Após muito esforço, conseguiram construir uma casinha – talvez a coisa mais linda já feita – fresca, com um cheiro típico de rústico e confortavelmente desmagnetizada. Os céticos logo desacreditaram, apontando os fios elétricos de cobre e as maçanetas de aço, mas nem foram muito a fundo nas críticas. A casa desmoronou, não suportando o contrair e dilatar diários da cidade e, assim, se comprovou que casas de madeira são inviáveis. Mas, em geral, os cidadãos acharam que havia certa razão no movimento e a venda de carpetes de madeira e papéis de parede que simulam mogno subiram assustadoramente.
Lâmina, enfim, é uma cidade como qualquer outra. As pessoas lá moram por suas escolhas e, mesmo se constrangidas de forma fria e artificial, mesmo se suas escolhas são fruto de um estado de consciência alterado, ou ainda que não haja muitas opções, de lá podem sair quando bem entender. Lâmina é vingativa. Pune que a abandona ou a tenta mudar. Mas a mesma esperança que a torna produtiva, esse sentimento que dá forças pela fé de que o incerto pode ser melhor, é o sinal de que Lâmina ainda é humana. E responde a incentivos humanos.